quinta-feira, 29 de abril de 2010

Das bolhas, lágrimas e casulos...



Minha querida:

Olha, venho dizer-te que só hoje acabei o meu casulo. Por certo me perdoarás.

No outro dia, quando me pediste para tratar dos casulos, confesso ter deixado o meu de lado. Na altura pareceu-me mais indicado não me perder muito na minha arquitectura e, sim, olhar-te sigiloso na construção do teu, não fosses tu precisar de alguma atenção.

Sabendo que estava concluída a solidez da tua cripta decidi-me pois a deitar mãos à obra, tecer o meu envolcro.

Sabes, observei o esplêndido enleio e preparação das tuas vestes, acabando por te copiar nalguns pormenores. Sei que não te prenderás muito ao facto.

Bem: para a camada intermédia optei por tecer um fio quase invisível com uma mistura de cânhamo e sisal mergulhado em lágrimas de crisálida em meia vida. Depois, para a camada exterior, preferi seda de várias cores. Escolhi um matiz escarlate, levemente salpicado de malva onde alguns reflexos platinados ajudarão a reflectir os excessos de luz e excessivo calor. Liguei ainda uns quantos fios também de seda mas roxos. Roxo; achei que o roxo condensaria um pouco melhor os raios de luar que me quisessem visitar nas noites mais sombrias.

Nem te passa pela cabeça a quantidade de seda que nestas últimas horas tive que encomendar às larvas que se candidataram a ajudar-me; quanta labuta. As amoreiras ficaram quase nuas e asseguro-te que me senti algo condoído ao vê-las tão solícitas quando lhes pedi tamanha quantidade de folhas. Disseram terem estado à minha espera e que aquelas folhas me cabiam por direito. Foram de uma generosidade suprema.

Para a impermeabilização fiz um acetinado unto de orvalho colhido em brotinhos de crisântemos, seiva de acácia florida e umas gotinhas de chá de princípe embalado ao canto das cigarras. Bem sei que assim ficará um pouco vistoso e correrei o risco de ser detectado por algum predador astral, mas à aurora e ao crepúsculo passará despercebido junto ao horizonte. De resto, quanto às horas diurnas terei de vigia o palhacinho que me acompanha desde sempre. É um amiguinho ermafródita que vive milhares de anos e só optará por um sexo no dia em que se apaixonar. Para o interior segui os teus passos e também optei pelo negro e, claro, também pela seda, mas esta embebida em néctar de rosas de porcelana. Achei mais seguro em função da excessiva luz que se anuncia e também a mim, quando excessiva, cega. Para o lado onde assentarei os pés coloquei três elementos muito minimais: um quadradinho dourado para me lembrar das virtudes do tempo, outro redondo branco para me animar o pensamento e não me deixar esquecer todas as cores que preciso ainda descobrir no canto das estrelas, e um terceiro, triangular, um nada mais pequenino, púrpura, para me manter atento à aproximação dos cometas que trarão noticias dos pássaros e das mariposas que procurarem sossegar a visão longe da acutilância dos lampiões excessivos. Para repousar a cabeça escolhi um dos nenúfares que deixaste naquele lago onde dancei algumas valsas ao som dos girinos. Sobe uma nuvem Andrómediana ficará bem acondicionada. Para os líquidos foi um pouco mais complicado acertar com a mistura mas acabei por juntar também um pouco de orvalho mas do que me pende dos olhos quando no zénite o sol teima em me ferir a alma. Coleccionei alguns frasquinhos e usei-os agora. Sabia que me viriam a servir. Ao orvalho adicionei uns gramas de pele da infância também guardada numa caixa de cartão pérola que preservou o aroma por inteiro. Coloquei umas gotículas de sumo de ananás cortado com essência de almíscar para manter o equilíbrio e aroma da mistura. Por fim adicionei ainda uns gramas de pólen de flor de laranjeira regada a suor de noites castas de amor sideral. Quanto ao aconchego e macieza das pálpebras escolhi duas folhas de lírio branco colhidas pela alvorada dos capítulos seculares. O branco translúcido dos lírios permitir-me-á olhar para dentro. Para as asas deixei-lhes espaço... bastante, para que nunca sentissem entropia alguma.

Tendo observado a precisão da tua espiral ocorreu-me à última hora redimensionar uma, semelhante à tua. Engendrei uma minúscula que me caberá somente no indicador direito. Temi que acaso ela redemoinhasse demasiado pudesse ficar eufórico com as visões oferecidas. Assim, antevejo que só os dedos me possam acelerar.

Faltava-me ainda encontrar solução para a estabilidade do casulo quando uma formiga com quem durante o descanso falei a encontrou. Sabias que costumo empreender grandes diálogos com as formigas e que da reciprocidade da troca tem nascido um respeito extremo e mútuo? Vê lá tu que a formiga com quem estive a falar era uma obreira bastante influente no interior da comunidade. Disse-me que quanto ao equilíbrio exterior não teria que me preocupar. Prestou-se a interceder por mim para que a partir do momento que ficasse estipulado o posicionamento do casulo as suas irmãs passassem a fazer o carreiro por baixo e com o simples andar de lá para cá o mesmo manter-se-ia suspenso e acima do solo, pelo que não só ficarei a salvo de qualquer tipo de paragitagem como de oscilações inoportunas das areias.

Em relação ao local onde finalmente mergulhar no sono desejado gostaria de ficar não muito longe do teu, embora a distância suficiente para que os nossos silêncios não se entrechoquem. Saberia bem saber-te por perto. Pelas minhas previsões amanhã cairão os primeiros pingos de chuva ácida. Intuo ser essa a data do fecho da campânula central.

Entretanto, boa viagem. Estou em querer que no sonho nos acenaremos sorrindo.

Aquele abraço.

PBC

* Dedicado e oferecido à poetisa Ana Luísa Ferreira em 2003 após embriagantes noites de metáforas

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