quinta-feira, 31 de maio de 2012

Pelo menos eu claudico e voçês não...


Seis e quarenta e cinco da manhã e o despertador toca depois duma noite em que a meio acordo aos berros. Não me perguntem o porquê mas o facto é que por vezes acontece. Talvez o susto de viver em Portugal. Levanto-me qual noctívago desorientado no próprio quarto, faço as devidas ablações matinais, preparo-me a custo para o subsequente e fico prestes a sair. Generosa e paternalisando-me, sem saber o quanto me irrita o sequer aludirem privarem-me da minha fantasia de independência, a Ana decide emprestar-me o carro dela. Menos mau. O dia soa a agraciado. Agradeço-lhe mas não sem alguma culpa por deixar o meu red califonircation car encostado como um pária desolado por não se exibir. Tenho a mania de atribuir aos carros a capacidade de nutrirem sentimentos por mim. A psiquiatria certamente tem uma explicação para isso mas o certo é que, maluco, não, não sou. Despedidas feitas lá sigo até que cerca de quatrocentos metros à frente me lembro de ter deixado o tabaco em casa. Retrocedo já inflamado pela adrenalina do stress, subo a escada a paço largo para não cochear, apanho os cigarros mas não encontro o isqueiro. Duas opções fazem-me hesitar entre ambas. O volume da caixa de fósforos da cozinha no bolso das calças a ludibriar a visão do meu falo ou o isqueiro electrónico e sonoro que o meu sogro me trouxe duma das viagens dele: Uma geringonça metálica com cara de leão e corpo e rabo de peixe que de cada vez que o abro, a título de ser o hino de Singapura, em concórdia com a chama, solta irritante, estridentemente e de forma roufenha um acicate aos pássaros do distrito todo. Opto por este preparando-me para a ambiguidade de sentimentos que desse momento em diante me desenhará o resto do dia. Há opções totalmente desprovidas de intenção e eu, quando se trata dos meus cigarros a acender faço tudo menos dar o recto ou pôr-me a jeito da autoridade. É verdade, há quem seja mais imbecil do que eu só por causa disto.

Porque continuo com a panca de tentar descobrir a vanguarda claro está que meia hora antes do marcado na convocatória da consulta, qual terceiro idadista à porta do supermercado, lá estou eu ao lado duns pensionistas aguardando a abertura das portas. 


Como na rua, por enquanto, por cá, ainda nos podemos escudar dos incómodos num cigarro, decido sacar dum e acende-lo com a geringonça asiática. Sempre que o abro ocorre-me de imediato a rua do Bem Formoso e os negócios da china que calés e monhês negrejam por lá. E pronto, já sabia, chega-me o tal sentir a nostalgia da diferença sucumbir à vergonha, a culpa por afrontar os pássaros, a certeza de que os souvenires asiáticos que tentam reproduzir as lendas não têm lugar no paraíso, e no dissimulado esgar o perverso prazer de quem já conquistou o direito a ser julgado por despautério moral e pelo fumar coadjuvado pela gratidão duma oferta. Os olhares dirigem-se estupefactos para mim, uns reprovadores, outros jocosos e outros ainda piedosos. Não entendo o porquê destes. Normalmente é nessa altura que exibo aquela cara entornando os óculos e o sorriso deslavado dos palermas tentando desculparem-se a quem não lhes oferece alternativa ao caso em julgamento. Tento o máximo de cagança ao repô-lo no bolso mas percebo-me volátil. Assumo o isqueiro e pronto. É meu, se não gostam comprem Bic’s e se querem um mandem-no vir. Porque o meu piroso é meu e só meu. Lume ainda vá, pode ser que dê, agora o isqueiro, não! Antes passar pela fealdade dos olhares populares mantendo os bons costumes.

Cigarro apagado e ex que aparece um enfatado tipo pactuante da crise lançando em redor a prepotência do costumeiro olhar para com subordinados. Pereceu-me uma tentativa de camuflar a porrada levada pela mulher já que não tinha cara de conseguir o contrario. Qualquer esgrimir de olhares com ele levava-o ao tapete antes do combate iniciar.

De seguida surge um outro, de bermudas, papeis na mão - talvez algum ensaio sobre manicómios - e rompante de quem se atrasou para tirar o pai da forca. Chega à porta, como se a cegueira lhe fosse um hábito mais cultivado do que somático e os direitos dele estivessem acima dos da escumalha, abeira-se, sacode-a e bufando percebe estar fechada até para ele. Era  daqueles que nas bichas do super e autocarro consegue dar jus ao crédito dos parvos nestas situações. Porque a maior parte das vezes passam à frente com a mesma cara com que ficam quando o clube deles perde. Sabem o sabido mas fazem por negá-lo empinando o nariz. Há quem diga cara de cu. Uma senhora chega atrás dele e pergunta quem foi o último. Fazendo-se de estranho ao momento ele cala-se mas eu aponto logo o dedo dizendo: - Foi ele. Ah, aquele mereceu. Então isto é assim, vai uma pessoa para ali de véspera e ele ignora-o achando que o mundo é a tasca da Tonecas lá do bairro, que ele nunca pinou mas diz que sim, que os outros são a mãe dele? Se não lhe deu educação desse.

A senhora volta a perguntar o mesmo e ele o mesmo, nem pia, e eu outra vez: - Foi aquele senhor. Afronta-me e agasta-me estupidez e injustiça; o que é que hei-de fazer? E o sujeito, notando-me temerário, dando para a frente dois passos intimidadores, como que perguntando se era com ele a minha implicância – até parece que não sabia ser – fantasiando o meu temor nele pergunta mesmo: Quem, é comigo? – Sim, o senhor foi o último. Ora, ele não sabia do meu feitio biliar e que me cai a costela para a malandrice. Coisas lá do bairro e dos tiros aos ouvidos na infância, que nessas alturas me congelam o semblante e num relance fulminam a distancia que me separa dos palonços deixando-me em guarda, fronha franzida e rosnante que não passa despercebida e só um verdadeiro maluco decidirá afagar com xico-espertice. De facto constatei que ele pretendia mais parecer-se com um híbrido dos dois, pelo jeito no parecê-lo, do que o era de facto. Senão tinha ido mais longe e experimentado o sabor dum isqueiro de Singapura pela goela abaixo. Sossegou o facho mas não aceitou a condição de ser mais um. Menos mal.

Portas abertas. Entramos. Uma senhora lutando entre o nutrir piedade e o desferir poder conferido pelo ordenar carneiros à porta do matadouro faz cumprir as regras escrupulosas da casa. Não só me espantou tal facto em Portugal como me levou à desconfiança. É que por cá a pontualidade não bomba mesmo. É coisa de otário. Se a folha diz meia hora antes é pois meia hora antes. Portanto os que chegam antes que desamparem a loja. E lá vou eu para mais um cigarro iniciado ao som da marcha singapurense arrepiando-me os tímpanos, mas à porta do carro da Ana, que sei de experiência vivida que ela, neste assunto tem um pacto com a ASAE e, cigarros, no japonês dela, nem que estivesse à porta da maternidade na tenção de ver aparecer um Cardosinho.

Mas o melhor foi quando já dentro do carro, aproveitando a espera para descansar antes de chegar o cansaço, estou eu de olhos fechados quando sinto um solavanco abalar-me o sossego. Desperto, olho para trás e deparo-me com uma Mercedes branca a recuar de fininho. Saio e constato que o meliante ao volante; culpadíssimo da crise, gordo, pançudo, seboso e urticante, nababo em decadência e sonso, aliás tão escorregadio que se as enguias fosse rubicundas eram assim; se prepara para sair impune às provas do crime. Dou uma rápida espreitadela ao agora já meu pára-choques, não vejo nada, fito o tipo mas o empertigado avança imediatamente com um “não tocou”. Aí é que dou graças ao previdente descanso que me furtou. A querer fazer-me desconfiar das minhas certezas. Ora agora! Não me refreei. Lanço-lhe uma descasca de compassiva moral e a praguejar torno às benesses da espera.

Regresso pontualmente junto à máquina das senhas. Desta vez já não é a senhora das ovelhas mas um senhor tão velho e encarquilhado que para se suster se apoia num sorriso tão piedoso e compincha que chego a sentir inveja. Este tipo de pessoas aguenta-se por aguentar a dor alheia. Deviam existir mais pessoas assim.

O preço da consulta não é o esperado e também aí ganho o dia, não fosse o funcionário do atendimento prestar mais atenção a alimentar a conversa da vizinha ao lado do que aos utentes. O costume. Ocorre-me o Santana Lopes e que aquela gente deve considerar-se acima dos mortais somente por lhes terem dito terem um chefe VIP. É que é comum as pessoas confabularem estatutos por virem a saber que outros sabem, têm ou fazem. Apossam-se do alheio desde que lhes sirva para fugirem do que ou de quem são.

A caminho da sala de consulta confronto-me com o Paços Coelho na televisão e percepciono não estar em espaço augurante de coisa boa. A mais o médico tem o mesmo nome de um ex-ministro pelo que a perspectiva do diagnóstico também me deixa apreensivo e desconfiado.

Enquanto espero; não sei se sabem mas quando se espera num hospital, ao fim de um pouco as cadeiras tornam-nos indiferentes à politica e a única coisa a valorizar passa a ser a possibilidade de ainda haverem cadeiras nesses espaços; as próprias cadeiras que coladas ao rabo nos reclamam permanência e engolem até ao pescoço até ao momento em que ouvimos o nosso nome.  Depois tornamo-nos uma sombra das nossas certezas. Porque o tempo, de dúvidas, enormiza-se.

Falta pouco para a minha vez quando passa uma mãe a mastigar pastilha elástica levando a reboque um filho adolescente na fase do não se atura. Ela lança-me os faróis e estarreço. Percebo tratar-se de alguém habituada a ser fodida sem reclamar pois o olhar dizia fode-me enquanto a boca sempre a ruminar, desdenhosa, dizia vai-te foder. Os hospitais são férteis em motivos cinematográficos. Há de tudo e perder-me-ia num o suficiente para mais um guião.

Entro e dissipo as minhas dúvidas. Não, não se trata do ex-ministro. Menos mal. Mas menos mal o caraças! É que a mãe do filho previu o veredicto médico: Estás fodido! E agora vamos lá fazer mais exames para ver quão fodido estás.

Despeço-me do Sr. Doutor – é um que chegou de Jaguar e se ele pode dar nas vista com o Jaguar também eu posso fazê-lo com o meu isqueiro -, quase quase sucumbo á tentação de lhe perguntar se é irmão do ex-ministro mas previdentemente sou iluminado pela precaução: Melhor não perguntar não vá também ele ter ressentimentos com o poder governativo.

Saio no meu passo novo e claudicante. Sempre tive a impressão de que um claudicar como o meu, por revelar termo-nos permitido à aventura e a viver além das encomendas do dia a dia, nos empresta um certo charme, principalmente se for acompanhado por uma bengala de castão de prata. 

Chego ao carro e, porra!, está bloqueado por outro. Suspiro e cedo à tentação dum impropério. Desabafo com a chave e chega a dona do emplastro. Simpática e cheia de desmesuradas desculpas. Sorrio, perdoo, nada a fazer. E regresso a casa.

E ainda me perguntam o porquê de acordar aos gritos a meio da noite? Pelo menos eu claudico e vocês não. Se claudicassem já não perguntavam.

PBC

terça-feira, 22 de maio de 2012

No Pico da Agulha


No Pico da Agulha é uma curta metragem independente, drama que retrata uma possível realidade não tão distante das nossas vidas quanto isso. É antes de mais um filme de actores e um ensaio fotográfico narrado nascido da reflexão do autor acerca do actual panorama do cinema português, na qual a estética propositadamente negra e suja reflecte as dificuldades pelas quais a vontade de fazer ultrapassa e deve ultrapassar as condições e meios para que se possa fazer cinema em Portugal. Porque o amor pelo fazer e o motivo que o preside, como demonstram todos os intervenientes no projecto, se tornou mais forte do que as limitações impostas pelo sistema regente da produção cinematográfica. Porque para se narrar uma história basta havê-la; uma folha, um lápis e uma plateia, por menor que esta possa ser. Que as ideias que dão vida à gesta deverão ser partilhadas.
PBC

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Redenção à frustração?



Entedia-me esse permanente ar carregado, de nuvem cinzenta, pairando sobre a expressão esgar rosnante de quem - leia-se portugueses – engendrando pequenos poderes de bairro parece ter sempre algo a provar, como se a minha fosse sempre maior do que a tua mesmo quando não o é. Digo: Um bem parecer onde só pela negativa parece possível a redenção à frustração de, na maior parte das vezes, o conquistado não ir alem do sofrível. Indubitavelmente o que faz de nós e na essência, verdadeiramente, um país terceiro mundano com pretensões à europeização. E porque não medíocre?  

PBC