sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Obscena verdade


Gosto das coisa com verdade, das que de tão verdadeiras se tornam quase obscenas, como os teoremas mais simples comprovando o inadmissível, o sorriso da minha filha ao oferecer-lhe uma folha de papel rasgada, a espontaneidade dos seus abraços sem cálculos; são a harmonia duma raiz quadrada perfeita; o coração dos apaixonados criando galáxias num simples beijo, a lei da relatividade inscrita no ranho colado à face duma criança a crescer livre, o tempo de vida de um homem como mera fracção de segundos à escala do universo, a saudade do meu pai, e por vezes de mim mesmo, as palavras escondidas na alma de uma foto sem técnica arrasando tabuadas ditas fundamentais, a geometria algébrica desenhando círculos no seio duma família feliz só por se poder abraçar, as proporções do David de Miguel Ângelo confirmando a formula divina nas mãos do homem, entrever nas pinturas brancas de Miro a razão do universo, atestar num retrato de Rembrandt o porquê dos fotões, e dos neutrinos empurrando-me para onde tiver de ir. Mas não gosto de réplicas mal amanhadas de produtos mal conseguidos, do pretenso humor de alguns ofendendo até a inteligência às pedras da calçada, do aparvalhanço dos que pretendem ter grassa sobre o que nenhuma graça tem, todos eles como se me quisessem provar dois e dois serem cinco, da relação da ignorância com as colunas esquecidas do tempo, da falta de provas cabais alimentando convicções dos que dizem desacreditar ou crer no que desconhecem, do desperdício energético em telefones a tocarem desnecessariamente, de bocas abrindo-se sem nexo só para se livrarem do próprio vazio, do olhar dos que tentam vender-me a falsidade por bússola existencial, da saudade do meu pai, e por vezes de mim mesmo, da aritmética dos governantes, do que não cabe nos ângulos da minha paz, porque me basta a verdade enunciada por um número finito de geratrizes, a soma multiplicando o que um vocábulo ou um olhar podem denunciar, ou a exactidão retórica de outros. E tudo isto só por gostar de verdades que de tão verdadeiras se tornam quase obscenas.  

PBC

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Anjos e demónios

DR


Sei tratar-se dum demónio sempre que o inferno se inflama nem que seja por o canário da vizinha não cantar exactamente à meia noite ou tão só porque o meu firmamento é cristal reflectindo-as ou iluminando-lhe as presas que me quer cravar. E eu, simples pecador que, ao morrer, seguirá directamente para Céu. Já não necessito de amargar no inferno, que esse, buscando um anjo, tenho-o percorrido todo na terra. Talvez por a minha mente ser catedral encerrando segredos de colossal biblioteca à qual não posso fugir, ancestral e eterna, blindada ao mundo, onde o risco de me enclausurar se afigura eminente e, no entanto, para me assombrar a fugacidade dos sonhos mais temporais a esparsas flanqueia de par em par, convidativamente, os portões. Ao menos tivessem a benevolência de não se escancararem ao ponto de evidenciarem do interior a ignorância grassando cá fora. Que, para tormento meu, serve de alimento àquele demónio.

PBC