terça-feira, 31 de agosto de 2010

O maço.

Foto PBC

Escondia-se no insano recurso ao tabaco, pelo que colocou a mão no bolso das calças e quase procurando-se retirou o maço de cigarros amarrotado. Apalpou-o, flanqueou-lhe as abas, espreitou, certificou-se com o indicador destro não haver nenhum cigarro oculto e concluiu já não ter nenhum. Resignou-se. Parecendo tratar-se dum sólido objecto, com quanta força lhe chegou à mão evocou inconscientemente o poder do mundo ao amachucá-lo. Olhando em redor, focando o olhar numa precisão de quem necessita livrar-se do que é desnecessário e lhe impede a prossecução dos gestos mais leves e corriqueiros procurou um caixote de lixo. Não descobrindo nenhum no horizonte, a frustrada urgência em sentir-se um pouco mais limpo levou-o a inspirar pesadamente o esgar de zanga que quem o observasse perceberia ter acordado com ele naquele dia. E o ar que na avenida, por ser a mais movimentada da capital, misturado com o roncar dos motores, o barulho das obras constantes, o vai e vem dos que perseguem os seus afazeres e ócios e toda a pululante azáfama se revestia sempre duma ácida e pesada densidade entrou-lhe feéricamente pelas narinas, entontecendo-o. Sentiu o cheiro a cidade carcomer-lhe a pituitária e arqueou a sobrancelha direita. Um banco dos que ladeavam a berma da avenida puxou-o, não tanto pelo cansaço da noite mal dormida mas pela necessidade de escrutinar todos os passos que de casa até ali o tinham conduzido. Ainda mal se tinha sentado e logo reparou num caixote de lixo plantado mesmo à sua frente. Suspirou alguma satisfação e com antecipada saudade mirou nostalgicamente o maço. Convicto de que a experiência em encestar lhe continuava fiel elevou-o acima da cabeça e lançou-o, como se duma assentada se fosse livrar de todos os fantasmas, ânsias, frustrações, zangas, desassossegos, ideias, alegrias e prazeres fumados um a um na simplicidade de os banalizar. A sumária segurança reencontrada no simples acertar no alvo, como se na ausência de outras certezas fosse o bastante para lhe devolver a identidade possibilitou-lhe uns escassos segundos de relaxe. Regressou-lhe a vontade de fumar e levantou-se pachorrentamente, caminhando em direcção ao quiosque vermelho que sabia existir um pouco mais abaixo. A meio caminho lembrou-se que no início da noite anterior, quando a conheceu, antes de terem acabado na cama, tinha escrito o telefone dela na prata do topo do maço e nem sequer tinha reparado nisso ao se livrar dele. Enfadado com a situação comprimiu os lábios mas nem lhe ocorreu voltar ao caixote e resgatar o número. Esperava-o a novidade de novos cigarros e outras noites mal dormidas.

PBC

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Se me chamas...

FOTO PBC


Hoje, antes mesmo do despertar dos insectos e do ocre das fachadas esboroadas me sorrirem às esquinas da cidade, antes de mim, mais expectante do que a luz onde te invento, amanheceu o silêncio... e só depois o olhar, largado à memória dos cardos torrando à soleira das planícies áridas.

Depois, antes de tomar por rumo a suspensão das palavras por oferecer, deambulei, sereno, junto à borda de todos os rios de saliva contida nos sussurros disfarçando o suspiro e a irresoluta voz dos ecos, devolvendo o nexo às cores da fotografia que te regista na alma o nome, conduzindo-me os passos e o mistério dos dedos apontando ao horizonte o sorriso…

E perguntei-me se saberiam os anjos do porquê de as formas que desenho no espaço nascerem antes da vontade, denunciando o desejo. Ou se seriam estas esferas coloridas que me gravitam nas mãos o não pensamento e só eco, o que de ti me lembra quando ao vento segredas mais que o romper do silêncio, ou as estrelas donde me chamas. Se me chamas…

PBC