sexta-feira, 18 de julho de 2014

A minha avó René




Nunca a ouvi queixar-se de nada. Confessou-me um dia que ais e uis eram coisa de gente fraca. Nem quando a vida lhe pesava já tanto e o vigor do sorriso esbatendo-se procurou acertar-se com o fim, mesmo aí, a legitimidade para lhes ceder procurou outras bocas. Manteve-os sempre silenciados. O alivio, encontrava-o nas preces, prazeres da mesa e no mais profundo silencio do qual ao sair ganhava alento para mais dias, sempre dignos, e para nos dar a certeza de ser árvore que chegando-lhe a hora haveria de morrer de pé. Assim aconteceu. Cedo iniciou o percurso das percas.  Mãe nunca conheceu, finou-se ao pari-la. Entre outras tantas perdas viu partir dois filhos ainda crianças, marido, amigos, já depois dos setenta uma filha, genros que também foram filhos, largou em total desapego a terra onde nasceu, negócios, propriedades e toda uma existência construída a sacrifícios rumando sem alternativa para a incerteza. Nem ais ou uis se lhe ouviram. Eram coisa de gente fraca, dizia. Lágrimas vertia-as recatadamente com a mesma finura com que as enxugava, sem fitas ou agravos que lhe enlutassem mais a dor. Chamávamos-lhe a Marquesa, por ter a pose, acertividade e o delicado trato duma. Fui o último familiar a vê-la, extinguindo-se no leito de morte. Estava-mos destinados àquela derradeira despedia, eterna. Em vão o procurei pelo habitual mas logo o olhar lhe fugia para junto dos que lhe antecederam a viagem. Aproximei-me dela, fiel, beijei-lhe terna e amorosamente a testa limitando-me a um até já. Soube ser a última vez que sentiria nos lábios a sua pele de bebé. Teve-a sempre assim, macia e sedosa, sem rugas, quase aos noventa. A terra, soube-o então, comê-la-ia mas a eternidade jamais a deixaria ir-se, mantê-la-ia como uma esfinge velando pelos meus ais e uis. Tal como a ela doem-me mais a sair do que abafados. Sangue do mesmo sangue ensinando nascer das dores a edificação da alma e dureza da carne. Assim era a minha avó René, aquela que me legou esta consubstanciada repugnância a quaisquer ais ou uis sem útil justificação. E se para ela poderiam ter tido utilidade. Ou até para mim.

PBC

Continuo resoluto


Incomoda-me saber ter sido naquele momento que o meu coração me impediu de procurar mais. Bastou-me a timidez daquele olhar sem dúvidas para saber que depois dele não encontraria atrás de nenhum arbusto ou rua idêntico desejo nem vontade dum tactear-me a alma que me prendesse assim. E só por isso continuo resoluto em deixar de me sentir constrangido se entretanto to devolver à pele.

PBC
 

sábado, 12 de julho de 2014

Só mesmo o paizinho

Não é metáfora. Leia-se literalmente: A minha filha passa o tempo todo pendurada aos meus calções em desequilíbrio não me permitindo mover desafogadamente de um lado para o outro sem medo de a ver quebrar os queixos. Por este andar qualquer cabelo que me reste não ficará por cá muito mais. Vale-me é a fé de que nestes amanhos fique abundantemente saciada do ser incómodo e cansativo penduricalho e, futuramente, já não venha a necessitar sê-lo colada aos calções de algum biltre que a escoiceie pelo facto. Se assim se mantiver, por mais que encha o ego aos sorteados ninguém aguentará. Só mesmo o paizinho.

PBC 

Espalham-se ao comprido.



Há algo de incongruente, ridículo diria mesmo, nesta questão do sexismo e formatação do género, essa história que logo à partida tanto pais como mães fazem recair sobre as suas pequena criaturas. É que o à revelia inserirem uns no clube da pilinha e outras no do folharéu na minha humilde opinião parece-me meio bacoco e desfasado da realidade actual. Aliás, só serve o marketing das marcas. Quando olhamos para a aquisição de papeis que a evolução passou a oferecer a verdade de hoje mostra-nos que a harmonização da luta pela igualdade de géneros; será sempre utópica; já não se coaduna com a dos nossos antepassados. Pelo contrário, rompe com ela. Mas apesar disso, vê-lo e fazer por entendê-lo de frente pugna por passar-nos ao lado. Em linha simples, progenitores e sociedade em geral espalham-se ao comprido neste fazer a cama onde acabam por se deitar. Quer dizer; fazem a cabeça aos miúdos no sentido de nem menina brincar com carrinhos, nem menino com bonecas ou menino não usar calças cor de rosa nem menina chucha azul e outras tantas. Mas como na maior parte das vezes, por lhes estar imposta essa função, com a conivência e silenciosa exigência dos homens são elas a fazerem as escolhas do que e quando usar começa e acaba a ser sobre as mesmas que recai muita da responsabilidade. Falo das mães, das que transformam as suas raparigas em verdadeiras Marias Antonietas versão couve lombarda fúscia e os seus rapazes em verdadeiros escafandros, cinzentões, versão bota da tropa, as mesmas mães que não só não gostam de serem vistas como aselhas e perigos na estrada como nos entremeios acabam a reclamar e a barafustar com os parceiros, criticando-os directamente ou em conluio de classe, clubistas, entre elas, amaldiçoando-os, catalogando-os de ineptos e desajeitados num simples mudar fraldas. Esquecem-se é que assim nunca permitirão aos seus pequenos e grandes homens especializarem-se em tarefas que a elas mesmas simplificariam a vida, já que passariam a obter um apoio muito mais fluido no cuidado com os filhos. Aliás, salvo raras excepções, finalmente, e graças a Deus ou ao demónio que por vezes também entra nestas contas, alguns homens já começam a assumir os seus papeis mais alargados enquanto pais, embora para descrédito do dito sexo forte o grosso ainda fuja da tarefa de pai em todas as frentes. Já no respeitante à atitude destes, quando se referem à sua macheza e virilidade por conduzirem sem cuecas cor de rosa, eu que nunca o fiz, em caso de necessidade, por exemplo e sem ser exemplo para ninguém, vesti-las-ia não temendo que sobre o meu material se abatesse alguma enfermidade ou moléstia incapacitante; razão de sobra para me dar prazer afirmar que moléstia é viver acomodo a um em nome dum passado histórico erigido à volta duma sociedade patriarcal a caminho da extinção mas toda a via continuando a esbracejar para não sucumbir à evolução da espécie pugnando já sem sentido por manter intocável o reduto macho, ou de princesa, como quiserem. Só que presentemente ser macho implica conseguir colocar numa queca todas as cores do espectro visível. E já agora; aqui para nós que ninguém nos ouve; ser mulher também. Não entendam não não ser de todo a cor ou o objecto a ditarem o género mas a maneira do individuo lidar com a sua identidade e daqui a uns anos digam-me qualquer coisinha que nessa altura quem se rirá serei eu.

PBC