quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Palavras de desejo


"Não me ocorrem palavras suficientemente esclarecedoras do porquê de te amar. Somente me acode o desejo de entendê-lo nos pormenores do teu corpo, e a vontade de te escrever na pele as que mal consigo dizer."

PBC in " Alma dos amantes" 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Só silencio e olhos o sabiam.


..."Não havia nada a fazer a não ser vivê-la. Nem eles o queriam. Afinal, quando uma paixão assim surge não existem regras definidas nenhumas que possam desafiar a razão a cessá-la nem a possibilidade de se refazer com outra sorte a existência dos apaixonados. Estão-no e pronto. Por isso sufocava-os a distancia e serenava-os estarem à distancia dum simples olhar. Porque a pele se distendia para lhes embalar arrepios e o desejo acertando-lhes o ser com o tempo; sentiam-no como a exactidão do reencontro ansiado durante séculos. Só o silencio e os olhos o sabiam. Talvez fosse essa a única descrição do estarem tão terrivelmente apaixonados. Não havia outra causa além dessa e a do incontrolável apelo dos corpos cedendo à vontade de se terem. À noite, já na cama, almejarem-se era a sua almofada e, ao longo do dia, sentiam constantemente a alma largar o corpo em desenfreada corrida partindo para os braços uma da outra, fundindo-se, de forma que quando experimentavam essa sensação tudo o mais que não fosse um suspiro ou o desejarem-se mais e mais sabia-lhes a incompletude. Doía-lhes a espera e a incerteza do que ambicionavam viesse a precede-la; o único lugar onde já há algum tempo pertenciam. Ao olharem-se, mais do que o recato resguardando a incerteza da correspondência devoravam-se, confirmando-o, dissipando a angustia de se pertencerem sem se desfrutarem"...

PBC in "A alma dos amantes" 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A minha avó René




Nunca a ouvi queixar-se de nada. Confessou-me um dia que ais e uis eram coisa de gente fraca. Nem quando a vida lhe pesava já tanto e o vigor do sorriso esbatendo-se procurou acertar-se com o fim, mesmo aí, a legitimidade para lhes ceder procurou outras bocas. Manteve-os sempre silenciados. O alivio, encontrava-o nas preces, prazeres da mesa e no mais profundo silencio do qual ao sair ganhava alento para mais dias, sempre dignos, e para nos dar a certeza de ser árvore que chegando-lhe a hora haveria de morrer de pé. Assim aconteceu. Cedo iniciou o percurso das percas.  Mãe nunca conheceu, finou-se ao pari-la. Entre outras tantas perdas viu partir dois filhos ainda crianças, marido, amigos, já depois dos setenta uma filha, genros que também foram filhos, largou em total desapego a terra onde nasceu, negócios, propriedades e toda uma existência construída a sacrifícios rumando sem alternativa para a incerteza. Nem ais ou uis se lhe ouviram. Eram coisa de gente fraca, dizia. Lágrimas vertia-as recatadamente com a mesma finura com que as enxugava, sem fitas ou agravos que lhe enlutassem mais a dor. Chamávamos-lhe a Marquesa, por ter a pose, acertividade e o delicado trato duma. Fui o último familiar a vê-la, extinguindo-se no leito de morte. Estava-mos destinados àquela derradeira despedia, eterna. Em vão o procurei pelo habitual mas logo o olhar lhe fugia para junto dos que lhe antecederam a viagem. Aproximei-me dela, fiel, beijei-lhe terna e amorosamente a testa limitando-me a um até já. Soube ser a última vez que sentiria nos lábios a sua pele de bebé. Teve-a sempre assim, macia e sedosa, sem rugas, quase aos noventa. A terra, soube-o então, comê-la-ia mas a eternidade jamais a deixaria ir-se, mantê-la-ia como uma esfinge velando pelos meus ais e uis. Tal como a ela doem-me mais a sair do que abafados. Sangue do mesmo sangue ensinando nascer das dores a edificação da alma e dureza da carne. Assim era a minha avó René, aquela que me legou esta consubstanciada repugnância a quaisquer ais ou uis sem útil justificação. E se para ela poderiam ter tido utilidade. Ou até para mim.

PBC

Continuo resoluto


Incomoda-me saber ter sido naquele momento que o meu coração me impediu de procurar mais. Bastou-me a timidez daquele olhar sem dúvidas para saber que depois dele não encontraria atrás de nenhum arbusto ou rua idêntico desejo nem vontade dum tactear-me a alma que me prendesse assim. E só por isso continuo resoluto em deixar de me sentir constrangido se entretanto to devolver à pele.

PBC
 

sábado, 12 de julho de 2014

Só mesmo o paizinho

Não é metáfora. Leia-se literalmente: A minha filha passa o tempo todo pendurada aos meus calções em desequilíbrio não me permitindo mover desafogadamente de um lado para o outro sem medo de a ver quebrar os queixos. Por este andar qualquer cabelo que me reste não ficará por cá muito mais. Vale-me é a fé de que nestes amanhos fique abundantemente saciada do ser incómodo e cansativo penduricalho e, futuramente, já não venha a necessitar sê-lo colada aos calções de algum biltre que a escoiceie pelo facto. Se assim se mantiver, por mais que encha o ego aos sorteados ninguém aguentará. Só mesmo o paizinho.

PBC 

Espalham-se ao comprido.



Há algo de incongruente, ridículo diria mesmo, nesta questão do sexismo e formatação do género, essa história que logo à partida tanto pais como mães fazem recair sobre as suas pequena criaturas. É que o à revelia inserirem uns no clube da pilinha e outras no do folharéu na minha humilde opinião parece-me meio bacoco e desfasado da realidade actual. Aliás, só serve o marketing das marcas. Quando olhamos para a aquisição de papeis que a evolução passou a oferecer a verdade de hoje mostra-nos que a harmonização da luta pela igualdade de géneros; será sempre utópica; já não se coaduna com a dos nossos antepassados. Pelo contrário, rompe com ela. Mas apesar disso, vê-lo e fazer por entendê-lo de frente pugna por passar-nos ao lado. Em linha simples, progenitores e sociedade em geral espalham-se ao comprido neste fazer a cama onde acabam por se deitar. Quer dizer; fazem a cabeça aos miúdos no sentido de nem menina brincar com carrinhos, nem menino com bonecas ou menino não usar calças cor de rosa nem menina chucha azul e outras tantas. Mas como na maior parte das vezes, por lhes estar imposta essa função, com a conivência e silenciosa exigência dos homens são elas a fazerem as escolhas do que e quando usar começa e acaba a ser sobre as mesmas que recai muita da responsabilidade. Falo das mães, das que transformam as suas raparigas em verdadeiras Marias Antonietas versão couve lombarda fúscia e os seus rapazes em verdadeiros escafandros, cinzentões, versão bota da tropa, as mesmas mães que não só não gostam de serem vistas como aselhas e perigos na estrada como nos entremeios acabam a reclamar e a barafustar com os parceiros, criticando-os directamente ou em conluio de classe, clubistas, entre elas, amaldiçoando-os, catalogando-os de ineptos e desajeitados num simples mudar fraldas. Esquecem-se é que assim nunca permitirão aos seus pequenos e grandes homens especializarem-se em tarefas que a elas mesmas simplificariam a vida, já que passariam a obter um apoio muito mais fluido no cuidado com os filhos. Aliás, salvo raras excepções, finalmente, e graças a Deus ou ao demónio que por vezes também entra nestas contas, alguns homens já começam a assumir os seus papeis mais alargados enquanto pais, embora para descrédito do dito sexo forte o grosso ainda fuja da tarefa de pai em todas as frentes. Já no respeitante à atitude destes, quando se referem à sua macheza e virilidade por conduzirem sem cuecas cor de rosa, eu que nunca o fiz, em caso de necessidade, por exemplo e sem ser exemplo para ninguém, vesti-las-ia não temendo que sobre o meu material se abatesse alguma enfermidade ou moléstia incapacitante; razão de sobra para me dar prazer afirmar que moléstia é viver acomodo a um em nome dum passado histórico erigido à volta duma sociedade patriarcal a caminho da extinção mas toda a via continuando a esbracejar para não sucumbir à evolução da espécie pugnando já sem sentido por manter intocável o reduto macho, ou de princesa, como quiserem. Só que presentemente ser macho implica conseguir colocar numa queca todas as cores do espectro visível. E já agora; aqui para nós que ninguém nos ouve; ser mulher também. Não entendam não não ser de todo a cor ou o objecto a ditarem o género mas a maneira do individuo lidar com a sua identidade e daqui a uns anos digam-me qualquer coisinha que nessa altura quem se rirá serei eu.

PBC

quinta-feira, 10 de abril de 2014

E a consciência disso, ninguém ma tira.



O homem não é um ser isolado do todo. Uma das principais razões para a estupidez humana é o facto de se considerar senhor do seu nariz quando no fundo não é mais do que senhor do livre arbítrio, suas correlacionadas opções e do ego, arbítrio meramente livre em factores relativos a uma corrente de eventos nos quais o ego, como véu da temporalidade, ao nos vedar a clarividência diante dos episódios a que somos sujeitos, fazendo-nos sentir superiores ao que realmente somos e lançando-nos engodos em proveito dum funcionamento cego porém cumpridor funciona como mecanismo de defesa do universo. Neste âmbito, se tivermos em linha de conta que o ADN manobra a matriz identificadora da nossa identidade, lugar e papel a ocupar na cadeia existencial e ordem cósmica, atribuindo-nos não só faculdades individuais como também a faculdade da permeabilidade e rejeição de informação que nos potencie as características pessoais, que mais não são do que veículos transmissores de dados destinados a constituir ou vetar massa critica essencial ao equilíbrio de determinado espaço em prole da estabilização de sistemas mais alargados do que aquele onde nos inserimos, perceberemos que independentemente de o resultado das nossas decisões ser baseado na estabilidade pessoal ou não, na legitimidade de propósitos ou não, o culminar delas, se já não havia sido traçado por forças que não as da nossa vontade acaba a influencia-las encaminhando consequências sempre relativas às necessidades desse processo de estabilização, pelo que, ou nos são devolvidas ou nos permitem avançar mais linearmente ao lado de todos os outros eventos, pois que todas as deliberações e decisões que nos lançam à acção ou falta dela estão sempre condicionadas a uma cadeia de eventos internos e externos que as precedem, que vão desde a construção da nossa personalidade influenciada pelas coordenadas geofísicas onde estamos, nascemos e nos criamos até ao clima, à alimentação, educação, vivencias e outras que nos empurram à participação dessa cadeia de factos. Por isso mesmo me pergunto: Não sendo pelo prazer da fuga a mim mesmo ou dum alheado desfrutar da vida de que me vale a cagança e a estupidez da vontade própria em detrimento da humildade se no fim, com ou sem milhões no bolso, com ou sem calças de marca ou com ou sem conhecimento dos meus limites e do dos outros não passo de mero veiculo transmissor de informação de necessidades superiores à minha diminuta condição? Como resposta, obtenho sempre a seguinte ilação: Toda a acção e sua qualidade fará sempre diferença no resultado do meu existir, mais ou menos amplo, mais ou menos pacificado, mais ou menos positivamente energisado. E a consciência disso, ninguém ma tira. Com a dos outros, creiam ou não nisto como verdade, posso eu bem. Congratulo-me por serem ou acharem ser donos do que vale o que vale.

PBC

terça-feira, 8 de abril de 2014

Mas o cosmos.

Sabes?; gosto de crer o universo como o que de mais poético existe. Por comparação, somente se lhe equiparam o sorriso da nossa filha e os suspiros e gemidos que como estrelas eclodindo lhe deram corpo. E não é um acreditar somente por acreditar. Antes uma certeza como a de te amar. Muitos dirão haver a mão de Deus nisso. Outros simplesmente que fruto da nossa vontade. Mas serão histórias. Estarão todos errados, embora pudéssemos equacionar o sermos onde acabamos sempre por nos termos atribuindo-lhe a inferência de valores duma energia primordial divina. Há matemática para isso, como para a da minha pituitária procurando-te no fervor de alguns dias ou para a elasticidade dos beijos prolongados que se repetem e já existiam antes mesmo de ocorrerem. Não sei se já te disse mas o universo acontece pela existência de forças de carga contrária e as galáxias e processos férteis pela relação de sistemas binários gravitando em torno uns dos outros graças às leis da atracção e gravidade, e que empurrados ou afastados por partículas invisíveis percorrendo toda a eternidade em proveito da criação de estabilidade e massa crítica essencial ao equilíbrio cósmico acabam por se fundir produzindo ou evitando sistemas mais amplos. Digamos que na plena e derradeira expressão do amor. Talvez por esse mesmo motivo, para que me sinta pleno, uns dias necessite de viver a transmutação, não de ti em mim ou de eu em ti, que isso é fantasia de poetas, mas somente a de sermos o meio caminho que nos amacia a pele, para que ao nos descobrirmos tesão se abra o céu no qual voarmos ao encontro do infinito. Noutros dias, nos onde sou onde não me encontras, pois que o cosmos me requisita noutro hemisfério, basta-me escutar-te na repercussão do que deixamos sobre a cama, sermos meramente silêncio no qual tomarmos sem reticencias a extensão do vazio que naturalmente nos separa, para que no simples gesto do desejo aclarado possamos ser novamente sopro de luz na memória do que repetir, uma e outra vez, suavemente, como o lento enlace das galáxias, ou furiosamente, como o embate selvagem de planetas maiores. Quem sabe até, tornarmo-nos Deuses, quem sabe…  se o que me transporta até aí não é mais que energia criadora; não eu, não tu, mas o cosmos.

PBC

terça-feira, 11 de março de 2014

Cabeças em merda.


Da minha janela vê-se cada uma. Ainda não entendi se a estupidez tem causas genéticas ou se advém da relação com os pais. É que há alguns que são perfeitas máquinas de fazer a cabeça do filhos em verdadeiros depósitos de merda. Explico: Fumando um cigarro deparei com um pai a ensinar o filho a andar de bicicleta. Imaculadamente reluzente a dita, diga-se de passagem. E o cenário prometia. Ora, a criancinha, na casa dos cinco seis  anos, entre o terror do estampanço e o do que já conhecia de ginjeira, as reprovações do pai, aos esses avançava uns escassos metros até se desorientar e travar bruscamente a marcha, com o pai sempre nervosíssimo. Assim que o miúdo tomava embalo, o pai, qual marine, começava a cantarolar “eu sou um granda ciclista, trálálálalá. E quando o puto repetida e tendencialmente guinava para a vedação do ringue, porque é assim mesmo, tendemos a rumar para junto de suporte, ele, aos berros e resfolegando, gesticulando como uma criança, de punhos cerrados, como se quisesse arrancar os próprio cabelos, dizia: - Não, não, não, para o muro não!! E isto vezes sem conta. Numa delas, não me contendo, de cá de cima, para que o tipo ouvisse, em meia surdina soltei um “grande lição de ciclismo”. Já me estavam a dar os forniques. O tipo baixou o volume nas investidas contra o miúdo mas a estupidez do tom manteve-se até que acabou por soltar a frase mágica: - Não, não, não, para o muro não, porra! Mais vale caíres e estampares-te mesmo do que ires contra o muro! Depreendo que porque o puto serviria de almofada à bicicleta e que ao chegarem a casa guardasse a criança na arrecadação e fosse com a bicicleta para cima. Certamente o mesmo tipo de pai do rapaz que ainda há pouco, depois de pedir à amiga um cigarro, que a coitada enrolou, se recusava a ir ter com ela para o receber. Como a miúda se fez de cara e o obrigou a ser ele a ir ter com ela, o engraçadinho, de bull terrier na trela, em vez de agradecer dá uma palmada no braço da desgraçada fazendo-a largar o cigarro. Claro está que, por eventualmente ter a cabeça menos feita em merda ela desatinou e pôs-se logo dali a mexer deixando-o agarrado à bull terrier. Casos destes têm-se sucedido. Lembro-me por exemplo da mãe que à saída do parque se virou aos berros para a filha de cinco anos, vestida do que para mim seria uma reluzente couve roxa desmaiada mas para ela princesa dos arrabaldes, dizendo-lhe: - Minha grande estúpida, já foste sujar os colantes e os sapatos; porra! Ora, se o parque é para as crianças brincarem e se espojarem, porque é que em vez de a vestir de couve não lhe vestiu um escafandro? Mas também há os outros exemplos nos quais em vez da simples intimidação e facadas na auto estima o que fazem é fomentar a má educação, como a mãe que ia provocando e espicaçando o filho de três anos, fingindo entregar-lhe a bola mas não chegando a fazê-lo, até à irritação da criança que entre pontapés e socos dos quais a senhora se ria acabou a ser parado com um “vá, pronto, acabou, sais mesmo ao teu paizinho”. Agora; culpabilizar esses pais por serem assim? Não coitados, já os pais deles o eram e os pais dos pais também. É que a merda tende a repetir-se de geração para geração e, tarde ou cedo, tanto na atitude como nos gostos, nem que a porca tussa, acabamos a puxar às origens. Quanto a mim acho deveras importante sabermos em que lado do cérebro nos depositaram a merda, para ou não virmos a sofrer graças ao seu cheiro, no caso de nos depararmos com quem não esteja para levar com ele e fazer como a miúda de há pouco ou, se pelo contrario encontrarmos quem esteja, não acabarmos a intoxicar esse incauto com as nossas merdices. Eu por exemplo sei bem onde e como a merda me foi depositada. Não sou dos que nesse âmbito considera a progenitura e ascendência como excelsas divindades sem culpas no cartório dos meus despropósitos e emoções turvas. Mas poucos são os que o reconhecem o cheiro da merda que carregam. Até porque o sangue é forte e a lealdade para com as origens dá jeito em situações de menosprezar o próximo. Portanto, há que preservar os bons costumes familiares. A mais, o que para uns é falta de educação para outros é um costume e tradição a proteger. É como os gostos e preferências. Eu falava de couve roxa desmaiada; não é verdade? Mas é só porque a minha cabeça também foi bombardeada com merda, poluída com sapatinhos de berloque e camisinhas de piquet e comportamentos de etiqueta. No fundo, apesar de ter feito a infância e parte da adolescência de calcinha de fazenda creme e camisinha azul e risca branca, sei que de gostos são gostos, legítimos, e sempre inerentes à formação de cada um. Nem melhores nem piores. Somente; no entender das minhas origens; lá está, pirosos por vezes. É lógico que não se pode pedir a uma varina que vista a filha como uma tia de cascais vestirá. Nem vive versa. É mais comum depararmo-nos com aspirantes a tias de cascais a refilarem com as filhas como varinas e varinas a pretenderem não ver a atitude das filhas por ser bem entre elas fazer vista grossa à deseducação das crias. Porque dá status no grupo. Enfim, merdas em prole de famílias felizes. E se não fossem estas famílias felizes, o que seria dos psicólogos? Se as disfunções psicológicas não se alastrassem aos outros como uma virose e, por irónico que pareça, não fossem sempre os outros a ter que fazer terapia para se livrarem das merdas alheias, como se destacavam as famílias entre elas?

PBC

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Obscena verdade


Gosto das coisa com verdade, das que de tão verdadeiras se tornam quase obscenas, como os teoremas mais simples comprovando o inadmissível, o sorriso da minha filha ao oferecer-lhe uma folha de papel rasgada, a espontaneidade dos seus abraços sem cálculos; são a harmonia duma raiz quadrada perfeita; o coração dos apaixonados criando galáxias num simples beijo, a lei da relatividade inscrita no ranho colado à face duma criança a crescer livre, o tempo de vida de um homem como mera fracção de segundos à escala do universo, a saudade do meu pai, e por vezes de mim mesmo, as palavras escondidas na alma de uma foto sem técnica arrasando tabuadas ditas fundamentais, a geometria algébrica desenhando círculos no seio duma família feliz só por se poder abraçar, as proporções do David de Miguel Ângelo confirmando a formula divina nas mãos do homem, entrever nas pinturas brancas de Miro a razão do universo, atestar num retrato de Rembrandt o porquê dos fotões, e dos neutrinos empurrando-me para onde tiver de ir. Mas não gosto de réplicas mal amanhadas de produtos mal conseguidos, do pretenso humor de alguns ofendendo até a inteligência às pedras da calçada, do aparvalhanço dos que pretendem ter grassa sobre o que nenhuma graça tem, todos eles como se me quisessem provar dois e dois serem cinco, da relação da ignorância com as colunas esquecidas do tempo, da falta de provas cabais alimentando convicções dos que dizem desacreditar ou crer no que desconhecem, do desperdício energético em telefones a tocarem desnecessariamente, de bocas abrindo-se sem nexo só para se livrarem do próprio vazio, do olhar dos que tentam vender-me a falsidade por bússola existencial, da saudade do meu pai, e por vezes de mim mesmo, da aritmética dos governantes, do que não cabe nos ângulos da minha paz, porque me basta a verdade enunciada por um número finito de geratrizes, a soma multiplicando o que um vocábulo ou um olhar podem denunciar, ou a exactidão retórica de outros. E tudo isto só por gostar de verdades que de tão verdadeiras se tornam quase obscenas.  

PBC

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Anjos e demónios

DR


Sei tratar-se dum demónio sempre que o inferno se inflama nem que seja por o canário da vizinha não cantar exactamente à meia noite ou tão só porque o meu firmamento é cristal reflectindo-as ou iluminando-lhe as presas que me quer cravar. E eu, simples pecador que, ao morrer, seguirá directamente para Céu. Já não necessito de amargar no inferno, que esse, buscando um anjo, tenho-o percorrido todo na terra. Talvez por a minha mente ser catedral encerrando segredos de colossal biblioteca à qual não posso fugir, ancestral e eterna, blindada ao mundo, onde o risco de me enclausurar se afigura eminente e, no entanto, para me assombrar a fugacidade dos sonhos mais temporais a esparsas flanqueia de par em par, convidativamente, os portões. Ao menos tivessem a benevolência de não se escancararem ao ponto de evidenciarem do interior a ignorância grassando cá fora. Que, para tormento meu, serve de alimento àquele demónio.

PBC