sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Porque já desci ao inferno e dei-me a desvendar o céu...

Sei ter nascido para uma vida plena que me permita demarcar o trigo do joio, não por ser ou para ser pejada de aparências e encerrada em bolha de caprichos mas porque, nas várias vertentes possíveis, concluindo com rara distinção formatura superior em fantasia descobri-a conduzir-me tão-só à ilusão. Porque já vivi em palácios que me pareceram barracas e dormi em barracas que me pareceram castelos, deslindando por fim como melhor tecto as estrelas. Porque já tive tudo e acabei sem nada. Porque já comecei do nada e acabei a ter mais do que carecia. Porque já desci ao inferno e dei-me a desvendar o céu. Porque já exigi o céu cedendo por troca o inferno e já me senti no paraíso estando só no inferno. Porque já quis estar de bem com Deus e com o diabo mas sem me ter feito valer. Porque já defrontei a cura do corpo na redenção da alma e a ruína da alma na pesquisa do corpo. Porque já vi homens perdidos na busca de tudo e outros encontrando por nada buscarem. Porque já comi sutras e evangelhos só para logo concluir a inexistência de doutrinas além do amor e da paz e que homens pervertem-nas e corrompem-nas a ambas. Porque dormindo já encontrei a raiz duma razão e acordado já perdi toda a razão. Porque já vi estruturas tidas como inabaláveis serem quebradas e darem lugar a novos edifícios. Porque já encontrei doutores que não sabiam nada e auto-didactas que sabiam bastante. Porque já vi privilegiados mal fadados e vagabundos felizes. Porque já vi ter tudo não tendo nada e ter nada desfrutando de tudo. Porque já achei livros e palavras dizendo peva e folhas em branco que diziam mais. Porque já vi burros carregados de livros e asnos deturpando-lhes o carrego. Porque já tive mulheres que não amei, fui tido por outras que nunca me amaram e amei algumas que nunca tive. Porque já amei sem estar perto e já afastei para não odiar. Porque já vi a arrogância ser-me vencida pela simplicidade e a simplicidade ganhar ímpetos de petulância. Porque já vi sábios andando a pé e broncos sentados em limusinas. Porque já encontrei música no silêncio e silêncio na música. Porque já vi homens de bem e bens que nunca fizeram homens. Porque já recebi honrarias por ninharias e tive ninharias por troca da honradez, percebendo na honra um paliativo para a fraqueza. Porque já quis ser forte na desonra e fui fraco na estima. Porque já me levei tão a sério que me tornei ridículo. Porque já fui quem não sou para ganhar aceitação e obtive o mundo sem perdão para mim. Porque já confundi o amor com a paixão chorando pela posse e ri de alivio por não ter possuído. Porque já fui possuído para simples alívio e já me aliviei por não ter que possuir. Porque já dei de bandeja para não ser colhido e colhi de bandejas vazias o fruto que me era devido. Porque já encontrei o tempo devorando o espaço e o espaço a não caber no tempo e o tempo como porta para nada. Porque já vi anjos acusados de demónios e demónios passarem por anjos. Porque já vi diamantes sem brilho e brilho onde não existiam diamantes. Porque já encontrei glória no ouro e ouro sem glória. Porque já me sentei com a virtude crendo-a desvalida e validei o opróbrio por conta de inutilidades. Porque já voei parado e voando cheguei a lado nenhum e de lado nenhum, parando, cheguei a todo o lado. Porque já namorei a morte para reclamar a vida e vi chegar a existência por não ter banido a morte. Porque já juntei a fome com a vontade de comer e comi sem fome nem vontade de comer. Porque já tive poder não fazendo por tê-lo e já vi em pevas o poder que me basta ter. Porque já entreguei tudo por um pote de nada e dum pote de nada já extraí tudo. Porque já vi o dito pelo não dito e do não dito conclui o dito. Porque já não soube quando parar e parei por não saber andar. Porque já  amontoei seixos caiados de ouro que me cravaram de negro e carreguei negrumes que volveram ouro. Porque já tive rotinas com actividade e actividades sem rotina. Porque já levei ao colo irmãos que me deixaram cair e soltei outros que nunca me levantaram. Porque já me baralhei no sentido da miséria e descobri na miséria um rumo para a verdade. Porque já procurei a autenticidade no rosto da falsidade e encontrei a realidade debaixo da mentira. Porque já realizei que, para me encontrar, frequentemente tinha que me esquecer do que sabia. Porque já julguei saber descobrindo por fim nunca ter sabido mais do que nada. Porque já vi de olhos fechados e, perdendo-me, ceguei de olhos abertos. Porque já vi a luz escondida na treva e a treva disfarçada de luz. Porque seriam precisos outros tantos anos de vida para te conseguir dizer que sei que nasci para uma vida plena não porque o meu caminho sejam pétalas mas porque, quando me mostras o nariz empinado por nada mais saberes e teres do que algo de nada, em vez de me impressionares, constróis-me o sorriso...

PBC

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