Sei ter nascido para uma vida plena que me
permita demarcar o trigo do joio, não por ser ou para ser pejada de aparências
e encerrada em bolha de caprichos mas porque, nas várias vertentes possíveis, concluindo
com rara distinção formatura superior em fantasia descobri-a conduzir-me tão-só
à ilusão. Porque já vivi em palácios que me pareceram barracas e dormi em
barracas que me pareceram castelos, deslindando por fim como melhor tecto as
estrelas. Porque já tive tudo e acabei sem nada. Porque já comecei do nada e
acabei a ter mais do que carecia. Porque já desci ao inferno e dei-me a
desvendar o céu. Porque já exigi o céu cedendo por troca o inferno e já me
senti no paraíso estando só no inferno. Porque já quis estar de bem com Deus e
com o diabo mas sem me ter feito valer. Porque já defrontei a cura do corpo na
redenção da alma e a ruína da alma na pesquisa do corpo. Porque já vi homens
perdidos na busca de tudo e outros encontrando por nada buscarem. Porque já
comi sutras e evangelhos só para logo concluir a inexistência de doutrinas além
do amor e da paz e que homens pervertem-nas e corrompem-nas a ambas. Porque
dormindo já encontrei a raiz duma razão e acordado já perdi toda a razão. Porque
já vi estruturas tidas como inabaláveis serem quebradas e darem lugar a novos
edifícios. Porque já encontrei doutores que não sabiam nada e auto-didactas que
sabiam bastante. Porque já vi privilegiados mal fadados e vagabundos felizes.
Porque já vi ter tudo não tendo nada e ter nada desfrutando de tudo. Porque já
achei livros e palavras dizendo peva e folhas em branco que diziam mais. Porque
já vi burros carregados de livros e asnos deturpando-lhes o carrego. Porque já
tive mulheres que não amei, fui tido por outras que nunca me amaram e amei
algumas que nunca tive. Porque já amei sem estar perto e já afastei para não
odiar. Porque já vi a arrogância ser-me vencida pela simplicidade e a
simplicidade ganhar ímpetos de petulância. Porque já vi sábios andando a pé e
broncos sentados em limusinas. Porque já encontrei música no silêncio e silêncio
na música. Porque já vi homens de bem e bens que nunca fizeram homens. Porque
já recebi honrarias por ninharias e tive ninharias por troca da honradez,
percebendo na honra um paliativo para a fraqueza. Porque já quis ser forte na
desonra e fui fraco na estima. Porque já me levei tão a sério que me tornei
ridículo. Porque já fui quem não sou para ganhar aceitação e obtive o mundo sem
perdão para mim. Porque já confundi o amor com a paixão chorando pela posse e ri
de alivio por não ter possuído. Porque já fui possuído para simples alívio e já
me aliviei por não ter que possuir. Porque já dei de bandeja para não ser
colhido e colhi de bandejas vazias o fruto que me era devido. Porque já
encontrei o tempo devorando o espaço e o espaço a não caber no tempo e o tempo
como porta para nada. Porque já vi anjos acusados de demónios e demónios
passarem por anjos. Porque já vi diamantes sem brilho e brilho onde não
existiam diamantes. Porque já encontrei glória no ouro e ouro sem glória.
Porque já me sentei com a virtude crendo-a desvalida e validei o opróbrio por
conta de inutilidades. Porque já voei parado e voando cheguei a lado nenhum e
de lado nenhum, parando, cheguei a todo o lado. Porque já namorei a morte para
reclamar a vida e vi chegar a existência por não ter banido a morte. Porque já
juntei a fome com a vontade de comer e comi sem fome nem vontade de comer.
Porque já tive poder não fazendo por tê-lo e já vi em pevas o poder que me
basta ter. Porque já entreguei tudo por um pote de nada e dum pote de nada já
extraí tudo. Porque já vi o dito pelo não dito e do não dito conclui o dito.
Porque já não soube quando parar e parei por não saber andar. Porque já amontoei seixos caiados de ouro que me
cravaram de negro e carreguei negrumes que volveram ouro. Porque já tive
rotinas com actividade e actividades sem rotina. Porque já levei ao colo irmãos
que me deixaram cair e soltei outros que nunca me levantaram. Porque já me
baralhei no sentido da miséria e descobri na miséria um rumo para a verdade.
Porque já procurei a autenticidade no rosto da falsidade e encontrei a
realidade debaixo da mentira. Porque já realizei que, para me encontrar,
frequentemente tinha que me esquecer do que sabia. Porque já julguei saber descobrindo
por fim nunca ter sabido mais do que nada. Porque já vi de olhos fechados e,
perdendo-me, ceguei de olhos abertos. Porque já vi a luz escondida na treva e a
treva disfarçada de luz. Porque seriam precisos outros tantos anos de vida para
te conseguir dizer que sei que nasci para uma vida plena não porque o meu
caminho sejam pétalas mas porque, quando me mostras o nariz empinado por nada
mais saberes e teres do que algo de nada, em vez de me impressionares,
constróis-me o sorriso...
PBC
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