De facto, há sonhos que se transformam em pesadelos e pesadelos que nos mostram quão ingénuos somos ao depositarmos expectativas nos sonhos. É mesmo. Querem lá saber. É que hoje tive um desses sonhos acabados em pesadelo e...
Estava eu feliz e
contente no meu mundinho, com um sorriso parvo até às orelhas, na presença do Deus todo altíssimo e magnânimo, a ouvi-lo dizer que “o já ter uma
respeitável idade em que saber o que queria e não queria da vida, cimentado com
o conhecimento e esclarecimento acerca das coisas, ia permitir-me beneficiar
descansadamente do desejo de ver crescer o meu núcleo familiar no aconchego e
paz dos anjos. E que após engravidar a minha mulher, eu, enquanto progenitor,
teria - notem bem, teria - uma sacra
gravidez e uma plena paternidade, como manda o figurino, onde o espaço para
vivê-lo intima e tranquilamente seria incólume, sem perturbações nem
interferências de quem quer que fosse”. E como era o altíssimo magnânimo a
dizer-mo, parvo, burro que sou, claro está, porque continuo igualmente a
colocar infundadas expectativas nas questões, ia acreditando nele. E assim foi
até ao momento em que como em todos os sonhos, repentinamente já a criança nascera e, ali mesmo, no
quarto dela, em adoração e regateando piedosas parecenças com elas mesmas um
cem numero de pessoas puxava a brasa à sua sardinha. De um lado, como numa
batalha campal, avós maternos e paternos diziam ser parecida com eles e de
arquitecto a fuzileiro ia ser de tudo. Do outro, cerrando fileiras, os irmãos,
uns a dizerem irem dar-lhe pêssegos todos os dias, outros abacates
e ginjinhas e outros ainda saias pintadas e botas cardadas. Tios, bisavós, a
criada da vizinha, o padeiro e até mesmo o meu gato Zé Manel, por seu turno
também iam dando umas bicadas dizendo há vez ou em coro: Não não, é é parecido
comigo e vai ter diariamente discos do Nelson Ned, botas de caça, repenicados e
atordoantes beijinhos, caçadeiras, e até havia quem dissesse açaimes. No
alvoroço nem sequer me viam posto a um canto, de olhos completamente
esbugalhados e cheios de interjeições por nem sequer conseguir aproximar-me na
tentativa de ver se a criança não seria mesmo era parecida comigo. Mas não,
nunca cheguei a ter oportunidade de constatá-lo porque, formando uma barreira
na qual a sufocavam lhes parecia mais importante formularem parecenças que lhes
dessem certeza dos seus géneses em supremacia serem o salvo conduto para todo o
tipo de direitos imaginários do que lhes ocorria constatarem que a criança,
estupefacta como eu, já começava a peidar-se, a arrotar e a desejar nunca ter
caído ali. Nem quando a pobre desatou num berreiro aquela gente deixou de se
digladiar quanto às parecenças. Um quadro dos infernos, dantesco diria mesmo.
Foi quando já importunado com tudo aquilo decido chamar o altíssimo e perguntar-lhe
o que se passava ali. Afinal, não me tinha afiançado ser uma santa
gravidez e uma salubre paternidade e que tudo correria como num sonho? Algo
trocista, do alto da sua sabedoria respondeu-me que “o meu problema era e
sempre tinha sido nunca escutar com atenção o por ele dito. Tinha dito
que TERIA e não que iria ter”. "Ora, - disse-me o magnânimo - há uma grande
diferença entre uma coisa e a outra e só os tansos não se apercebem. E se
não sabia distinguir a diferença entre uma coisa e outra então era porque afinal
nunca tinha estado preparado para vir a ser pai. Portanto, desemerdasse-me. O problema já não era dele mas meu.” Retorquindo ainda tentei alvitrar
novamente os meus direitos mas o todo poderoso, já pelos cabelos quer comigo
quer com o passado em redor decide lançar um raio seguido dum corisco e
ploft: Uma nuvem de fumo espalha-se, a malta fica toda banzada e um silencio
lúgubre invade o ambiente. Reparo que as pessoas começam a afastar-se desoladas
e quando por fim tudo parece amainar vejo a criada da vizinha consternada e de
mão na cara a dizer: “Ah, é mesmo parecido comigo”. Aproximo-me e, de olhos
esbugalhados, vejo então, diante de mim, sentado no berço e de nariz torcido,
um bebé tão escurinho como uma tição, com a cara do José Eduardo dos Santos,
mas com barba. O meu queixo cai e tenho de me segurar à parede para o caso de
acontecer desmaiar de pé. Aproximando-se em tropel e travando a fundo, o Zé
Manel olha para mim e diz: “Bem, pelo menos não está tudo perdido. Se vires atenta e gratamente, assim não terás de levar com eles a reclamarem sobre o menino direitos de
primazia, sucessórios, de posse, guarda ou educação. Até agora são só lucros,
portanto põem-te lá manso e trata mas é de acudires ao teu filho. Ainda nem mamou. Cheguei a
achar ter antes estado a falar com o demo em lugar do divino, mas não, tinha
mesmo sido com o altíssimo. Ainda mal havia tido oportunidade de me refazer do
choque e, levando pela mão uma geringonça tecnológica de origem chinesa a que
só os angolanos têm acesso, entrando pelo quarto dentro, surge o próprio do José
Eduardo. Aproxima-se do barbudo, dá-lhe um grande abraço, um beijo na boca, e
diz: "Vem a meus braços, meu neto, tu, o primeiro neto luso africano da
minha dinastia, aquele que há-de resgatar os males dos meus sonhos agora que me
aposentarei e me dá jeito a dupla nacionalidade. E a criada da vizinha, como um peixe abrindo repetidamente
a boca para fazer bolhinhas, continuava estupefacta e a proferir num murmúrio:
-“Afinal é mesmo parecido comigo”. Já farto de assistir a tudo aquilo, na
tentativa de resgatar a minha virilidade ferida e perdida, como se diante do quadro algum
direito de satisfação ainda me assistisse, de sobrolho levantado, dirijo-me ao
presidente quando, antes de alcançar o esboço da primeira pergunta, sem apelo nem agravo o gajo saca da geringonça, dirige-a para mim, carrega num botão encarnado e um
flash transforma-me num espermatozóide. Retira do bolso duas lamelas de
microscópio e espeta comigo entre elas, atirando-me seguidamente para junto do
muda fraldas. Claro está que daí em diante, espremido entre os vidrinhos, com a
boca completamente retorcida de forma a parecer estar sempre não se sabia se
enjoado se sorridente, eu, desgraçado de mim, passo a sentir-me não um
espermatozóide mas uma amiba espoliada a quem não importa atender. A mais, o
presidente, ansioso de poder satisfazer as suas carências e
dependências amorosas nos braços do neto começou a ir quotidianamente lá a
casa. Já não me bastava estar naquele estado e ainda por cima tinha de levar
com tudo o resto. Invariavelmente, acreditem, nesse pesadelo passei a ter todos os
dias o Eduardo dos Santos a entrar pelo quarto dentro e a atirar para cima de
mim nuns dias uma brochura enaltecendo as virtudes da desova da sardinha na
educação das crianças, noutros uma sobre os benefícios dos camafeus de lapela na
segurança delas, noutros outra sobre os benefícios da carraça nos afectos e,
noutros ainda, sobre o peso que os diamantes tinham no fortalecimento da dentição
delas. Vocês estão-se a rir mas não sabem o que é estar ali transformado em
espermatozóide que se sente uma amiba, a ler tudo aquilo sem poder sequer
balbuciar o desconforto de ter a vista toldada pelo desespero. A sorte era que
por vezes o Zé Manel chegava e com uma patada afastava a brochura abrindo uma
nesga pela qual me chegava alguma luz e me ia inteirando da interacção do homem
com o petiz. Um dia por exemplo, com a criança completamente enojada com a baba
dele e a dizer não querer mais amaços e a gesticular desaustinada, espreito, e
dou com o homem agarrado às barbas do miúdo e a sorve-las como quem chupa as barbas
a um camarão de Peniche. Um cenário arrepiante. Isto para não dizer da vez em
que, fazendo-se substituir ao puto, enfiado no berço, o José Eduardo começou a
fazer-se de bebé e, acusando-o de traição começou a exigir dele uma solução
para a economia mundial. Degradante, digo-vos. E à minha mulher nem nunca mais
a vi na zona.
Agora digam-me
lá: Com um pesadelo destes, acham mesmo que estou preparado para ser pai? E que o acordar por vezes aos berros é anormal?
PBC
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