Seis e quarenta e
cinco da manhã e o despertador toca depois duma noite em que a meio acordo aos
berros. Não me perguntem o porquê mas o facto é que por vezes acontece. Talvez
o susto de viver em Portugal. Levanto-me qual noctívago desorientado no próprio quarto, faço as devidas ablações matinais,
preparo-me a custo para o subsequente e fico prestes a sair. Generosa e
paternalisando-me, sem saber o quanto me irrita o sequer aludirem privarem-me da minha
fantasia de independência, a Ana decide emprestar-me o carro dela. Menos mau. O
dia soa a agraciado. Agradeço-lhe mas não sem alguma culpa por deixar o meu red
califonircation car encostado como um pária desolado por não se exibir. Tenho a
mania de atribuir aos carros a capacidade de nutrirem sentimentos por mim. A
psiquiatria certamente tem uma explicação para isso mas o certo é que, maluco,
não, não sou. Despedidas feitas lá sigo até que cerca de quatrocentos metros à
frente me lembro de ter deixado o tabaco em casa. Retrocedo já inflamado pela adrenalina do stress, subo a escada a paço largo para não cochear, apanho os cigarros mas não
encontro o isqueiro. Duas opções fazem-me hesitar entre ambas. O volume da
caixa de fósforos da cozinha no bolso das calças a ludibriar a visão do meu
falo ou o isqueiro electrónico e sonoro que o meu sogro me trouxe duma das
viagens dele: Uma geringonça metálica com cara de leão e corpo e rabo de peixe
que de cada vez que o abro, a título de ser o hino de Singapura, em concórdia com a chama, solta
irritante, estridentemente e de forma roufenha um acicate aos pássaros do
distrito todo. Opto por este preparando-me para a ambiguidade de sentimentos
que desse momento em diante me desenhará o resto do dia. Há opções totalmente
desprovidas de intenção e eu, quando se trata dos meus cigarros a acender faço
tudo menos dar o recto ou pôr-me a jeito da autoridade. É verdade, há quem seja
mais imbecil do que eu só por causa disto.
Porque continuo
com a panca de tentar descobrir a vanguarda claro está que meia hora antes do
marcado na convocatória da consulta, qual terceiro idadista à porta do
supermercado, lá estou eu ao lado duns pensionistas aguardando a abertura das
portas.
Como na rua, por enquanto, por cá, ainda nos podemos escudar dos incómodos num cigarro, decido sacar dum e acende-lo com a geringonça asiática. Sempre que o abro ocorre-me de imediato a rua do Bem Formoso e os negócios da china que calés e monhês negrejam por lá. E pronto, já sabia, chega-me o tal sentir a nostalgia da diferença sucumbir à vergonha, a culpa por afrontar os pássaros, a certeza de que os souvenires asiáticos que tentam reproduzir as lendas não têm lugar no paraíso, e no dissimulado esgar o perverso prazer de quem já conquistou o direito a ser julgado por despautério moral e pelo fumar coadjuvado pela gratidão duma oferta. Os olhares dirigem-se estupefactos para mim, uns reprovadores, outros jocosos e outros ainda piedosos. Não entendo o porquê destes. Normalmente é nessa altura que exibo aquela cara entornando os óculos e o sorriso deslavado dos palermas tentando desculparem-se a quem não lhes oferece alternativa ao caso em julgamento. Tento o máximo de cagança ao repô-lo no bolso mas percebo-me volátil. Assumo o isqueiro e pronto. É meu, se não gostam comprem Bic’s e se querem um mandem-no vir. Porque o meu piroso é meu e só meu. Lume ainda vá, pode ser que dê, agora o isqueiro, não! Antes passar pela fealdade dos olhares populares mantendo os bons costumes.
Como na rua, por enquanto, por cá, ainda nos podemos escudar dos incómodos num cigarro, decido sacar dum e acende-lo com a geringonça asiática. Sempre que o abro ocorre-me de imediato a rua do Bem Formoso e os negócios da china que calés e monhês negrejam por lá. E pronto, já sabia, chega-me o tal sentir a nostalgia da diferença sucumbir à vergonha, a culpa por afrontar os pássaros, a certeza de que os souvenires asiáticos que tentam reproduzir as lendas não têm lugar no paraíso, e no dissimulado esgar o perverso prazer de quem já conquistou o direito a ser julgado por despautério moral e pelo fumar coadjuvado pela gratidão duma oferta. Os olhares dirigem-se estupefactos para mim, uns reprovadores, outros jocosos e outros ainda piedosos. Não entendo o porquê destes. Normalmente é nessa altura que exibo aquela cara entornando os óculos e o sorriso deslavado dos palermas tentando desculparem-se a quem não lhes oferece alternativa ao caso em julgamento. Tento o máximo de cagança ao repô-lo no bolso mas percebo-me volátil. Assumo o isqueiro e pronto. É meu, se não gostam comprem Bic’s e se querem um mandem-no vir. Porque o meu piroso é meu e só meu. Lume ainda vá, pode ser que dê, agora o isqueiro, não! Antes passar pela fealdade dos olhares populares mantendo os bons costumes.
Cigarro apagado e
ex que aparece um enfatado tipo pactuante da crise lançando em redor a
prepotência do costumeiro olhar para com subordinados. Pereceu-me uma tentativa
de camuflar a porrada levada pela mulher já que não tinha cara de conseguir o
contrario. Qualquer esgrimir de olhares com ele levava-o ao tapete antes do
combate iniciar.
De seguida surge
um outro, de bermudas, papeis na mão - talvez algum ensaio sobre manicómios - e rompante de quem se atrasou para tirar o
pai da forca. Chega à porta, como se a cegueira lhe fosse um hábito mais
cultivado do que somático e os direitos dele estivessem acima dos da
escumalha, abeira-se, sacode-a e bufando percebe estar fechada até para ele.
Era daqueles que nas bichas do super
e autocarro consegue dar jus ao crédito dos parvos nestas situações. Porque a
maior parte das vezes passam à frente com a mesma cara com que ficam quando o
clube deles perde. Sabem o sabido mas fazem por negá-lo empinando o nariz. Há
quem diga cara de cu. Uma senhora chega atrás dele e pergunta quem foi o último. Fazendo-se de estranho ao momento ele cala-se mas eu aponto logo o dedo dizendo: - Foi ele. Ah, aquele mereceu.
Então isto é assim, vai uma pessoa para ali de véspera e ele ignora-o achando que o mundo é a tasca da Tonecas lá do bairro, que ele nunca pinou mas diz que sim, que os outros são a mãe dele? Se não lhe deu educação desse.
A senhora volta a perguntar o mesmo e ele o mesmo, nem pia, e eu outra vez: - Foi aquele senhor.
Afronta-me e agasta-me estupidez e injustiça; o que é que hei-de fazer? E o
sujeito, notando-me temerário, dando para a frente dois passos intimidadores,
como que perguntando se era com ele a minha implicância – até parece que não
sabia ser – fantasiando o meu temor nele pergunta mesmo: Quem, é comigo? – Sim, o
senhor foi o último. Ora, ele não sabia do meu feitio biliar e que me cai a
costela para a malandrice. Coisas lá do bairro e dos tiros aos ouvidos na
infância, que nessas alturas me congelam o semblante e num relance fulminam a
distancia que me separa dos palonços deixando-me em guarda, fronha franzida e rosnante que não passa
despercebida e só um verdadeiro maluco decidirá afagar com xico-espertice. De facto constatei que
ele pretendia mais parecer-se com um híbrido dos dois, pelo jeito no parecê-lo, do que o era de
facto. Senão tinha ido mais longe e experimentado o sabor dum isqueiro de
Singapura pela goela abaixo. Sossegou o facho mas não aceitou a condição de ser mais um. Menos mal.
Portas abertas. Entramos. Uma
senhora lutando entre o nutrir piedade e o desferir poder conferido pelo ordenar carneiros à
porta do matadouro faz cumprir as regras escrupulosas da casa. Não só me
espantou tal facto em Portugal como me levou à desconfiança. É que por cá a
pontualidade não bomba mesmo. É coisa de otário. Se a folha diz meia hora
antes é pois meia hora antes. Portanto os que chegam antes que desamparem a
loja. E lá vou eu para mais um cigarro iniciado ao som da marcha singapurense arrepiando-me os tímpanos, mas à porta do carro da Ana, que sei de experiência vivida que ela,
neste assunto tem um pacto com a ASAE e, cigarros, no japonês dela, nem que
estivesse à porta da maternidade na tenção de ver aparecer um Cardosinho.
Mas o melhor foi quando já dentro do carro, aproveitando a espera para descansar antes de chegar o
cansaço, estou eu de olhos fechados quando sinto um solavanco abalar-me o
sossego. Desperto, olho para trás e deparo-me com uma Mercedes branca a recuar
de fininho. Saio e constato que o meliante ao volante; culpadíssimo da crise, gordo, pançudo, seboso e urticante, nababo em
decadência e sonso, aliás tão escorregadio que se as enguias fosse rubicundas
eram assim; se prepara para sair impune às provas do crime. Dou uma rápida
espreitadela ao agora já meu pára-choques, não vejo nada, fito o tipo mas o empertigado
avança imediatamente com um “não tocou”. Aí é que dou graças ao previdente
descanso que me furtou. A querer fazer-me desconfiar das minhas certezas. Ora agora! Não me refreei. Lanço-lhe uma descasca de compassiva
moral e a praguejar torno às benesses da espera.
Regresso pontualmente junto à máquina das senhas. Desta vez já não é a senhora das
ovelhas mas um senhor tão velho e encarquilhado que para se suster se apoia
num sorriso tão piedoso e compincha que chego a sentir inveja. Este tipo de
pessoas aguenta-se por aguentar a dor alheia. Deviam existir mais pessoas assim.
O preço da
consulta não é o esperado e também aí ganho o dia, não fosse o funcionário
do atendimento prestar mais atenção a alimentar a conversa da vizinha ao lado do
que aos utentes. O costume. Ocorre-me o Santana Lopes e que aquela gente deve considerar-se acima dos mortais somente por lhes terem dito terem um chefe VIP. É que é comum as pessoas confabularem estatutos por virem a saber que outros sabem, têm ou fazem. Apossam-se do alheio desde que lhes sirva para fugirem do que ou de quem são.
A caminho da sala
de consulta confronto-me com o Paços Coelho na televisão e percepciono não
estar em espaço augurante de coisa boa. A mais o médico tem o mesmo nome de um
ex-ministro pelo que a perspectiva do diagnóstico também me deixa apreensivo e
desconfiado.
Enquanto
espero; não sei se sabem mas quando se espera num hospital, ao fim de um
pouco as cadeiras tornam-nos indiferentes à politica e a única coisa a
valorizar passa a ser a possibilidade de ainda haverem cadeiras nesses espaços; as próprias cadeiras que coladas ao rabo nos reclamam permanência e engolem até
ao pescoço até ao momento em que ouvimos o nosso nome. Depois tornamo-nos uma sombra das nossas certezas. Porque o tempo, de dúvidas, enormiza-se.
Falta pouco
para a minha vez quando passa uma mãe a mastigar pastilha elástica levando a
reboque um filho adolescente na fase do não se atura. Ela lança-me os faróis e
estarreço. Percebo tratar-se de alguém habituada a ser fodida sem reclamar pois
o olhar dizia fode-me enquanto a boca sempre a ruminar, desdenhosa, dizia
vai-te foder. Os hospitais são férteis em motivos cinematográficos. Há de tudo
e perder-me-ia num o suficiente para mais um guião.
Entro e dissipo
as minhas dúvidas. Não, não se trata do ex-ministro. Menos mal. Mas menos mal o
caraças! É que a mãe do filho previu o veredicto médico: Estás fodido! E agora vamos lá fazer mais exames
para ver quão fodido estás.
Despeço-me do Sr. Doutor – é um que chegou de Jaguar e se ele pode dar nas vista com o Jaguar
também eu posso fazê-lo com o meu isqueiro -, quase quase sucumbo á tentação
de lhe perguntar se é irmão do ex-ministro mas previdentemente sou iluminado
pela precaução: Melhor não perguntar não vá também ele ter ressentimentos com o
poder governativo.
Saio no meu passo
novo e claudicante. Sempre tive a impressão de que um claudicar como o meu,
por revelar termo-nos permitido à aventura e a viver além das encomendas do dia
a dia, nos empresta um certo charme, principalmente se for acompanhado por uma
bengala de castão de prata.
Chego ao carro e, porra!, está bloqueado por
outro. Suspiro e cedo à tentação dum impropério. Desabafo com a chave e chega a
dona do emplastro. Simpática e cheia de desmesuradas desculpas. Sorrio, perdoo, nada a
fazer. E regresso a casa.
E ainda me
perguntam o porquê de acordar aos gritos a meio da noite? Pelo menos eu
claudico e vocês não. Se claudicassem já não perguntavam.
PBC